30.11.12

Diario da India III - Dia 27


Acaba-se hoje o Novembro. Por cá sentem-se as noites cada vez mais frias apesar de o édredon, única peça que “veste a cama”, ser bastante quente. Ainda assim falta-me aquele aconchego que me habituei a ter pouco antes de embarcar rumo à terra das especiarias. Quanto aos dias continuam quentes. Continuo com a desesperante tarefa de esperar que terminem o que têm para fazer para depois concluir eu o meu serviço, enquanto isso não acontece recorro ao leitor de mp3 acabado de carregar com mais músicas, as músicas de sempre, o mais variadas possível para se adequarem a todos os estados de espírito. Vale de tudo para matar o tempo, tira-se algumas fotos, mesmo que sem motivo aparente, percorre-se os pontos de instalação para verificar mais uma vez o lento avançar da instalação. Chega o desespero, por já nada servir para matar o tempo, já nada me entretém e sinto-me cansado, de rastos, mesmo sem fazer nada. Sinto os gémeos ameaçarem que quebram e não percebo a razão, sinto-me mentalmente fatigado e um fúria enraivecida a nascer-me no interior por não ver o tempo passar. Recebi hoje a confirmação de que não será este fim-de-semana que regresso ao meu cantinho. Não será tão cedo como desejaria o meu reencontro com quem mais amo, não será tão cedo que vou acabar com esta saudade que me queima por dentro. Quero tanto que isto termine, quero tanto voltar, quero nunca mais regressar…

29.11.12

Diario da India III - Dia 26


Ficou então guardada para hoje a explicação de porque seria este um dia comprido. Ao contrário da primeira imagem que possa ter passado, não se trata de um dia custoso ou penoso. Há precisamente um ano, estava eu em Baga (India) quando uma dúvida me saltou à mente. Passo a explicar, eu estou com uma diferença horária de mais 5 horas e 30 minutos em relação a Portugal, posto isto, devo-me reger segundo que horário quando trato de questões que nada têm relacionadas com o país dos Himalaias? É desde 1986 o dia 29 de Novembro é o dia em que comemoro o meu nascimento, e em que os amigos e a família me desejam um feliz aniversário. Toda a gente define como comemoração de aniversário as 24 horas que compõem o dia, já eu me encontro num caso bicudo, pois para festejar o aniversário pela hora portuguesa, vou passar 5 horas e meia de comemoração para o dia 30, e para festejar pela hora indiana, festejo 5 horas e 30 minutos do dia 28. Ora gostando eu de festejar o meu aniversário e como sou eu que mando nele, decidi, com força de Lei, que o meu aniversário será considerado, este ano, entre as 0 horas de Chunar (India) e as 24 horas de Braga (Portugal), o que me dá a possibilidade de festejar durante 29 horas e 30 minutos. Festejar como quem diz, dentro dos possíveis receber mensagens de Portugal e alguns cumprimentos aqui dos Indianos. Todos os aniversários têm também uma surpresa, pode ser um presente ou outra coisa qualquer, como a surpresa de quem se olha ao espelho e exclama “Estou a ficar velho!” Eu também tive hoje uma surpresa. Por brincadeira o cozinheiro ficou de preparar ao jantar frango cozido, uma iguaria para quem come massa com pimentos há tanto tempo. Mas antes do jantar, chegou aos ouvidos do chefe do escritório que eu fazia anos hoje, cumprimentou-me, abraçou-me, sacou da carteira, pegou numa nota amarela de 100 Rupias (não chega a 1,50 €) e pediu que se fossem comprar chocolates, batatas fritas e bebidas para se festejar o meu aniversário. Tudo isto em Hindi e claro está, não percebi patavina. Já no escritório vejo entrar pela porta alguém com umas sacas cheias de chocolates, garrafas de “Thumbs up” (uma espécie de Coca-Cola mas que sabe a café gasificado) e uma espécie de batatas fritas picantes que pouco consegui provar. Chamou-se o resto do pessoal e pela primeira vez cantaram-me os parabéns em inglês, num inglês mal pronunciado, mas num inglês com alma, senti-o a cada abraço no final. Ficou registado o meu sorriso sincero de alegria e agradecimento pelo gesto amável de quem pouco pode oferecer, mas que oferece o que de melhor consegue e pode, porque nisso os Indianos são bons, dão o que têm, e quem dá o que tem a mais não é obrigado.

28.11.12

Diario da India III - Dia 25


Não se pense que a minha viagem a terras poeirentas, com estradas cheias de buracos, onde se conduz por onde der mais jeito e se passeiam vacas sem rumo, onde esvoaçam pássaros de cores que saltam à vista, serve apenas para ensinar algo a quem por aqui vive. Serve muitas das vezes para aprender. Aprender a dar valor a coisas singulares e simples do nosso dia-a-dia. Não falo de valores como o amor, a saudade, a família, os amigos… Falo de coisas bem mais simples. Hoje ensinaram-me que não devo brincar com os instrumentos de trabalho, não por poder danificá-los, mas porque aqui, e passo a citar, “não é permitido”. Ora andando eu com falta de coisas com que me distrair, e com uma fome imensa de ver o Braga jogar e de eu próprio dar uns chutos numa bola, vou dando uns toques com umas pedritas que me saem ao caminho. Hoje quando caiu um rolo de fita isoladora a um eletricista, resolvi não vergar a molinha para o apanhar, por me caiu mesmo aos pés, resolvi num jeito de quem se está a armar e tem a mania que é engraçado fazer um movimento brusco ascendente com o pé, o que levou a fita até á minha mão, e quando pensei que tinha feito uma grande coisa explicara-me que não era permitido brincar com instrumentos de trabalho. “Os instrumentos de trabalho são o que nos permite trabalhar, e ganhar dinheiro para comprar comida, logo os instrumentos de trabalho são a nossa comida, devemos respeitá-los”, foi mais ou menos assim que me explicaram, e foi assim que percebi porque como sempre massa com pimentos ao almoço e ao jantar… é que a minha ferramenta é sempre a mesma desde que cheguei! Já nem um chuto num rolo de fita posso dar. Amanhã avizinha-se um dia muito comprido, a explicação vem já a seguir.

27.11.12

Diario da India III - Dia 24


Hoje pensei em escrever sobre coisa nenhuma, nada aconteceu durante o dia que fosse digno de um relato mais ou menos detalhado capaz de entreter alguém que o lesse, ora pela minha falta de criatividade, ora pela falta de algo diferente, único ou simbólico. Nem mesmo ter acabado hoje a leitura de “O Evangelho segundo Jesus Cristo” (marco histórico para mim uma vez que só à terceira tentativa consegui ler a última página, a última frase, a última palavra) seria algo capaz de manter qualquer leitor atento. O jantar parecia mostrar-se na solidão. Numa mesa com doze cadeiras, apenas eu figurava num canto como quem tem vergonha de ser visto. A refeição é a mesma de sempre aos jantares e almoços, massa esparguete com pimentos e falta de alguém para conversar durante o jantar tornava a comida ainda mais desenxabida. A lata de bacalhau que trouxe de casa, desta vez continha dentro, além do bacalhau, do sal e do azeite, dois dedos de treta bem longos. Desengane-se quem pensa que falei com um bacalhau, ou com um pedaço de posta neste caso. Estive o jantar todo a falar com os serventes. Três nepaleses e um indiano. Tudo começou no momento em que abri a lata. Uma conversa num inglês muito mal explicado em que a linguagem gestual tentava fazer-se ouvir, simples palavras, simples gestos, pequenos desenhos, largos sorrisos… Perguntaram-me se o que comia era cobra, sabendo depois que era peixe perguntaram se era do mar, se eu era chinês, quanto era o meu ordenado, de onde vinha, onde ficava Portugal, como me chamava, qual a minha idade, se era casado, quando ia embora, mas tudo com muito respeito e sempre pedido licença para falar e perguntado se me estavam a incomodar e perturbar o meu jantar. Respondi que não, estava-me a fazer bem a conversa, estava a apreciar o quanto eles estavam interessados em falar com um estranho que come peixe do mar. Perguntei-lhes os nomes, que não decorei, perguntei as idades e disse-lhes que fazia anos na próxima quinta-feira. Só hoje me lembrei que fazia anos quinta-feira por causa de uma mensagem. De pronto me perguntaram se queria uma festa ou queria frango, disse-lhes que o frango aceitava mas a festa não porque não tinha cá os amigos, respondeu-me um num inglês meio aos soluços, na India tens quatro amigos, três do Nepal e um da India, nós somos os teus amigos. Palavras que me fizeram suspirar, no final fiz questão de os cumprimentar, mostraram-me toda a sua humildade. Não merecem o desprezo e o desrespeito com que são tratados diariamente, gostava de lhes mostrar um mundo diferente, fora da Asia, que lhes pudesse dar um novo futuro, mais decente, como eles merecem. Vou levá-los comigo, no coração!

26.11.12

Diario da India III - Dia 23


Várias vezes brinquei com a situação de dormir acompanhado na India, por insetos que me assaltavam a cama durante a noite principalmente a primeira viagem que fiz para cá, mas hoje, ao pequeno-almoço, foi proposto pelo gerente da casa que partilhasse o quarto, porque estava para chegar uma importante visita e não tinha onde ficar. Ora entre partilhar o quarto, que até tem dois colchões mas um só édredon, e mudar para uma casa com condições bem piores, lá acedi a passar duas noites “acompanhado”. Mais tarde deixou de ser necessário, e afinal até vou passar a noite sozinho. Entre o pequeno-almoço e o jantar nada mais fora da rotina habitual aconteceu que mereça destaque. Começo a ter dificuldade em encontrar algo para contar, algo marcante, que faça a diferença, que mostre o choque de culturas. Se calhar começo é a habituar-me eu a tudo o que por aqui acontece e tudo me parece banal, normal e nada me surpreende. Nem mesmo os tijolos feitos de uma matéria estranha que parecem ter o peso do mesmo volume em esferovite, e a verdade é que se desfazem como esferovite apesar de aparentarem ser tijolo-burro, daqueles que se fazem os fornos e as lareiras. Já tudo me parece normal, o sol que se esconde o dia todo entre a poeira, os portões e portões e portões que atravesso diariamente e que parecem apenas servir para dar emprego ao sem fim de seguranças que por cá se passeiam, as bicicletas com travões na roda traseira com chave (funcionam como um cadeado, neste caso fica a roda da bicicleta travada com chave), as lombas e as más suspensões dos TATA e dos Mahindra, tudo é banal e normal nesta terra, menos eu, eu sou o estranho, eu sou o português, eu sou o que vem de um país que a maioria nunca ouviu falar, eu sou o que tem ferramentas estranhamente funcionais e novas, eu sou o único a querer ir embora daqui, eu sou o único que não os entendo e sou o único que não me faço entender. Ao menos enumerei algumas coisas em que sou único!

25.11.12

Diario da India III - Dia 22


Nunca estive tanto tempo na em terras asiáticas, talvez por isso hoje tenha sido atropelado pelo cansaço. Não aguentei, senti a fraqueza e a falta de força nos membros, por muito que a mente ordenasse o corpo já mal obedecia e respondia em tempo útil. Tirei a tarde para um descanso, afinal de contas hoje é domingo e já não descanso há bastante tempo. Deixei as horas passar sem pensar em nada, fui lendo “O Evangelho segundo Jesus Cristo” de Saramago para entreter a mente, e ouvi música do mais variado possível para me abstrair do mundo onde estou. Já que falo no mundo onde estou, este tem sido um monte de cheiros muitos estranhos. Se à noite, junto ao escritório existem umas plantas que libertam toda a sua essência refrescante e acolhedora ao mesmo tempo, durante o dia por dentro do escritório inala-se o cheiro a criolina com que se limpa o chão, o mesmo cheiro da entrada de casa que se mistura no quarto com o cheiro a torrado do aquecedor, porque há por cá um nepalês que me acha com frio e teima em ligar-me o aquecedor do quarto. Cheiro mais estranho ainda tem um indiano que me vai auxiliando. O rapaz, sim rapaz porque é mais novo que eu e eu também sou um rapaz, tem um abundante, estranho e perturbador odor a fraldas ou a toalhetes. Não consigo explicar, mas um segundo depois de se sentir o cheiro começa a ser demasiado para ser suportável. Antes o cheiro dos quilos de incenso que por aqui se queimam por dia. Enquanto escrevia isto procurei insistentemente um cheiro que me tivesse marcado, mas só encontrei um, está em Portugal, a milhares de quilómetros de distância, mas sempre que fecho os olhos sinto o cheiro da minha flor… sabe tão bem!

24.11.12

Diario da India III - Dia 21


Dia 21, três semanas depois de ter aterrado no continente asiático. Nunca estive cá muito mais tempo que isto, mas desta vez quer o destino que fique cá por mais uns dias, talvez por ser a vez que me custou mais vir, a vez que me custou mais deixar alguém para trás, a vez que as coisas pior correm e mais me fazem querer sair daqui o mais rápido possível. Descobri hoje que na casa onde estou existem gansos, e descobri porque me acordaram perto das 5 horas da manhã com os primeiros raios de sol. Quando os olhos cerram já é só por cansaço, sinto-o no corpo todo, a cada movimento, ainda assim vou-me apercebendo das coisas engraçadas que a India tem. Há vários dias que uma música que parece saída de uma daquelas caixinhas chinesas me atazana a vida. Ouvi-a em três sítios distintos e separados, não conseguia perceber de onde vinha mas o certo é que me irritava. Ouvi-a em casa, no escritório e no armazém, raio de barulho de onde virá? Hoje consegui perguntar que barulho era aquele e explicaram-me que o barulho indica que a filtragem da água está em funcionamento. Qual o propósito? Não faço a mais pequena ideia. Por aqui já tinha notado também como mudam facilmente as expressões faciais das pessoas. Sempre que um superior está por perto, nota-se o medo e notam-se todas as palavras bem medidas e bem pensadas, porque aqui, quem manda pode. Para confirmar isso conto uma pequena história que tem o seu quê de cómico. Estava eu junto a dois Indianos que me ajudavam nas tarefas e um usava um capacete amarelo e o outro um capacete branco. Não sei porque que carga de água, o do ajudante do capacete amarelo decidiu tentar trocar com o capacete branco, tirou o seu capacete, tirou o outro mas nem chegou a fazer a troca, chegou o chefe cá do sitio perto de nós, acompanhado do chefe dos meus dois ajudantes e de mais meia-dúzia de pessoas e a primeira coisa que faz assim que chega perto nós é dizer bem alto “Estes dois estavam sem capacete. Vi este a tentar trocar o capacete com o daquele, e não adianta mentir. Por isso, 100 rupias de multa para este e 200 rupias de multa para aquele, com efeito a partir de agora.” Posto isto, foi embora à sua vida. Convém dizer que uma multa é pouco superior a 1 euro e a outra pouco superior a 2 euros, podia ser muito para outros trabalhadores, mas para estes até nem é. Curiosidades da India… Qual será a de amanhã?

23.11.12

Diario da India III - Dia 20


O sol quando nasce é para todos, hoje é dia de voltar ao sol que na verdade já sabe a inverno. Não ao nosso inverno, o inverno português, por aqui o sol queima menos, mas continua a fazer suar, nasce muito cedo e esconde-se por volta das 18 horas, reduz-me o tempo útil de trabalho, pois assim que ele se deita a luz artificial deixa de ser suficiente para iluminar o trabalho e a “mosquitagem”, que tem vindo a diminuir, invade-me o campo de visão. Faço apenas mais um esforço para pensar que hoje será um dia novo, uma nova realidade, um novo começo, cheio de força e de vontade, rumo à saída do túnel onde me esperam os braços mais aconchegadores do Mundo. A realidade em Chunar parece-me bem diferente, e apesar do pequeno-almoço em tudo igual aos outros, sinto-me mais aconchegado e sinto um tratamento mais simples apesar da grande dificuldade em se expressarem em inglês por aqui. À saída pedem-me para fazer um registo por ocupar o quarto. O empregado tenta dizer o meu nome e a verdade é que não fica muito longe da pronúncia, apenas a parte do Xavier soa estranha, mas mais à frente conto o porquê. Aqui não temos motorista, por isso, o caminho entre a casa onde dormimos e o escritório é feita a pé, na verdade são só 500 metros, não custa nada. A manhã parece arrastar-se, não há cá ninguém que trabalhe e volto a sentir aquela dor junto ao estômago e aquela revolta por não poder fazer o quero e o quero é mesmo começar a trabalhar para acabar o mais rápido possível. As horas passam, os minutos arrastam-se a espera termina algumas após o inicio, pouco tempo sobra até ao almoço, faz-se o que se pode. Volta-se a caminhar para o almoço, desta vez comida sem picantes, e ainda um fantástico pedaço de pão imaginem só. Um pão muito parecido com a configuração de um molete de São José, com a mesma capa e mesma textura, mas sem o sabor adocicado, sabia apenas a pão, nada mais, que bem me soube. Ao entrar no quarto reparo no porquê da estranha pronuncia, tenho o meu nome escrito na porta e é algo parecido com “Rvi Xravier” e quem o pronuncia em vez de ler “xis” no início de Xavier lê “Exz”. A tarde rendeu mais, as pessoas aqui parecem mais empenhadas, mais capazes, mais trabalhadoras. A falta de motorista levou-me a experimentar algo que se revelou uma boa injecção de adrenalina. Apanhei boleia de uma mota! Não andava de mota à cerca de 10 anos, e andar de mota a fintar camiões, carros, bicicletas e pessoas é uma experiência fenomenal, sobretudo se for feita na India e a 30 km/h. Hoje começo a reparar bem no meu quarto. Em vez de uma cama gigante reparo que afinal tenho duas pequenas camas juntas, não me importo porque só utilizo uma delas, tenho ainda uns chinelos que não são meus, uma dúzia de capas de arquivo num armário, umas botas numa gaveta e uma mala de viagem por cima do guarda-fatos, conclusão, este quarto pertence a alguém, espero que não volte enquanto cá estiver eu.

22.11.12

Diario da India III - Dia 19


É bem cedo que se toma hoje o pequeno-almoço. Dizem-nos que temos 5 horas de viagem pela frente, e se queremos chegar ao destino pela hora de almoço, devemos então partir bem cedo. Estamos prontos e falta apenas o motorista e o carro. Aguardámos. Aí vem um carro… não, não é este. Aguardamos mais um pouco, sento-me na mala com todos os meus pertences e pouso a mochila que me pesa nas costas. Sinto o nervoso miudinho querer aproximar-se, as perguntas sem respostas que sempre me martelam a cabeça vão e voltam. Que terá acontecido? Terão voltado atrás na intenção de nos deixar ir? Ficaremos cá mais tempo? Não me consigo distrair, mas eis que entretanto chega o motorista de sempre e o Jipe de sempre para nos levar a Chunar. No pouco inglês que se consegue perceber, explica-nos que só hoje de manhã lhe disseram que teria de ir a Chunar, mas ao que consigo constatar, e que mais tarde confirmei, ele sente-se feliz por fazer esta viagem e faz questão de dizer isso mesmo a toda a gente que encontra. Lá partimos, apesar de atrasados temos de regressar ao escritório 5 min depois da saída. Ao telemóvel dizem-nos que nos faltam uns papéis. Mas que papéis! La vamos buscar os ditos papéis e retomámos o caminho para casa de um indiano hipocondríaco que nos acompanhará na viagem. Com toda a sua calma e todo o tempo do mundo convida-nos a entrar em sua casa. Uma casa, para mim, como tantas outras, com entrada direta para a sala de jantar, ao fundo uma porta para a minúscula cozinha, à esquerda uma porta para um quarto, o dos miúdos, e à direita o quarto do casal. De salientar que todas as divisões são separadas por uma simples cortina. O chão é em cimento, coberto a espaços por carpetes, no teto uma lâmpada ilumina toda a sala, as paredes são onduladas e amareladas, e o exterior é quase todo ele em tijolo, daquele tijolo que só se encontra por cá. Na rua estão as vacas que por aqui se passeiam e fazem da rua como sendo sua, um vizinho traz comida para esta pequena cinzenta que aparenta ser mãe daquela que come de outro prato mais lá à frente. Do outro lado da estrada fica uma escola, e cá de fora consigo ouvir o coro de vozes das crianças, não as consigo ver e ainda bem, pois o rego de esgoto e lixo a céu aberto que fica entre a estrada e a parede da escola ia-me fazer sentir ainda pena daqueles pobres inocentes. Assim consigo imaginá-los imunes e protegidos destes mosquitos que transportam todo o tipo de doenças que caibam dentro deles. Partimos então por uma estrada que nunca vi, é a estrada em sentido oposto ao aeroporto de Kajuraho. Tentei de inicio captar tudo o que visualizava para poder reproduzir por palavras, mas a verdade é que ao fim de poucos quilómetros me consegui aperceber que seria tudo igual. As vacas presas nas árvores, os discos de uma espécie de lama e palha que secam ao sol e que não me atrevo a perguntar o que são, a miséria, as caras de fome, a pobreza, as lojas ambulantes, a fruta à venda sem condições nenhumas, os garagens de reparação de bicicletas, as buzinadelas de quem passa, o mesmo cheiro, o mesmo pó e os mesmos camiões. Faz-me confusão como são os indianos capazes de caberem em espaços tão minúsculos e ao mesmo tempo terem a força e a destreza de algo que parece impossível. Dentro de um carro, em tudo semelhante àqueles de caixa aberta que não necessitam de carta e que levam normalmente o condutor e um passageiro, cabem aqui 7 pessoas, que eu conseguisse contar. Mais à frente um sujeito de bicicleta, montado na bicicleta, transporta 6 botijas de gás. Uma em cada punho do guiador, mais duas de cada lado na parte de trás junto ao selim. Acredito que as botijas estivessem vazias, mas mesmo assim é, para mim, um feito que merece referência. Acabo por cair no sono. Não um sono muito pesado porque o indiano hipocondríaco tem uma voz muito aguda e que me provoca uma espécie de ruído nos ouvidos, e porque os buracos e lombas da estrada (que me fizeram por mais que uma vez bater com a cabeça no tejadilho do jipe) também não me deixam sossegado. Após a pausa para esticar as pernas, numa berma da estrada onde se cozinha ao ar livre e onde existem umas camas de vime ou arame para quem se quiser deitar, voltámos à estrada. Desta feita vou no banco da frente, o indiano foi lá para trás contar a história cronológica dos Deuses Hindus. Confesso que sentar-me no banco da frente esquerdo do jipe, sem pedais e sem volante me faz confusão, mas continuemos. O motorista avisa que esta estrada é a boa, a próxima será pior ainda, pergunto-me como mas rapidamente percebo que é por isso uma boa altura para dormir. Mais buraco, menos lomba, lá fui fechando os olhos a espaços e de uma das vezes que os abri encontrei-me no meio da selva. Sinto-me no cimo de uma montanha. Vejo à frente um enorme vale, onde fica então Chunar. Descemos uma estrada que se serpenteia formando “esses” quase impossíveis de atravessar por certos camiões, a verdade é eles atravessam, não têm outra estrada, mas também é verdade que avariam. Não é um bom sítio para avariarem os camiões ou haver um acidente, se é que há bons sítios para isso. Aqui, onde não há rede de telemóvel, onde se veem marcas de derrocadas não muito antigas, é talvez o pior sítio para se ficar parado. Isto para não falar nos assaltos e nos ataques feitos durante a noite por quem mora aqui misturado com os macacos. Realmente esta estrada é pior que a última. Mais uns solavancos, mais umas curvas e mais uns buracos, lá acabamos de descer a montanha e chegámos, hora e meia depois, à fábrica de Chunar. Nada de diferente de Rewa ou de Baga à primeira vista. Os mesmos uniformes, os mesmos portões, as mesmas lombas, a mesma sinalização e os mesmo nomes. Chegados à Guest House, somos recebidos com um carinho a que já não estava habituado, confesso. Sinto que existe aqui um ambiente mais calmo, descontraído, um maior sossego, coisa que já não sentia há vários dias. São cerca das 14 horas, já passa um pouco da hora de almoço e a fome é tanta. Um tenente coronel reformado, recebe-nos à porta e senta-se para almoçar connosco à mesa. O bigode farfalhudo branco e curvado para cima nas pontas, os óculos redondos e o cabelo grande fazem dele uma pessoa que transmite boa disposição. Apesar da fome apertar, ninguém avisou o cozinheiro que nós não comíamos nada picante. Temos de comer à força toda comida indiana. Eu fiquei-me pelo arroz branco, cozido e sem sal, sem sabor nenhum, o famoso “roti” também chamado de “chapati” e uns feijões extremamente picantes que só comi porque tinha mesmo muita fome. Pedimos que para o jantar nos preparassem massa, sem qualquer tipo de picantes. O senhor do bigode explicou isso ao empregado em hindi. Comemos a sobremesa em seguida, pela primeira vez na India saboreio uma laranja, que saudades eu tinha de uma laranja, tomamos café e assim que pedimos licença para nos levantarmos da mesa informam-nos que a massa demora apenas 1 minuto a ser servida… quem é que não percebeu que era só para o jantar? Não consigo comer massa. Desculpem, mas não consigo mesmo… Meia hora de descanso para nos restabelecermos da viagem atribulada e é tempo de conhecer a nova fábrica, as novas gentes, o novo mundo, o novo projeto. Apresentado a um Indiano com uma cicatriz enorme na parte de trás do crânio que se prolonga até ao inicio da espinha dorsal, espero pelo jipe que me levará até ao escritório que servirá de quartel. Percebo que a distância nem é assim tanta, cerca de 500 metros, em terreno plano e a direito que se podem muito bem fazer a pé. Mais um indiano, outro e outro e mais um ainda. Gente muito nova com nomes muito diferentes dos que eu utilizo normalmente e que me dificultam a sua memorização. Na verdade é impossível decorar os nomes deles sem que estejam associados a alguma mnemónica. Após os cumprimentos da praxe, lá voltamos ao terreno. Percebo que a organização aqui é bem maior, mais exigente e mais apertada. Percebo também que o trabalho deles está extremamente atrasado, queixam-se eles da falta de conhecimento das tarefas que deviam executar e queixo-me eu da minha falta de sorte. Ainda assim transmitem-me alguma confiança, uma confiança que nos últimos tempos eu não conseguia encontrar, uma vontade de triunfar, de conseguir acabar. Sinto uma lufada de ar fresco, ganho ânimo e sinto-me capaz de coordenar os trabalhos em parte não desiludindo quem confiou em mim. Levo essa confiança para a mesa do jantar onde a comida já não é picante mas a água também não é engarrafada, onde me sinto tratado com uma ponta de carinho e onde provo uma espécie de pão como o que como em casa. Regresso ao quarto, onde não tenho internet, e apercebo-me que no meio destas aventuras todas os meus telemóveis estão sem rede. Estou incontactável. De cada vez que perco o sinal de rede nos telemóveis, tenho de selecionar a nova rede manualmente, não o fiz depois de descer o monte onde não existia rede, percebo que nenhuma das mensagens que enviei para casa a dizer que tinha chegado bem ao destino foi entregue. Entro em pânico e apresso-me a resolver o problema. Toca o telemóvel finalmente e sinto um aperto enorme no peito. Do outro lado soluçava-me uma voz que temeu que tivesse corrido alguma coisa mal. Enchem-se os olhos de lágrimas, aperta-se o peito, doí a alma e desejo vir embora a todo o custo novamente. Perdi momentaneamente a boa disposição que tinha ganho. Apetece-me desistir e “teletransportar-me” para os braços quentes e aconchegadores da dona da voz. Não o consigo fazer, vou dormir com o remorso, com a dor e com a frustração. Dói porque te amo.

21.11.12

Diario da India III - Dia 18


Há dias que parece não terem saído do início. Era suposto, e estava tudo combinado para tal, hoje partirmos rumo a Chunar, a segunda parte da minha vinda cá. Contudo as reuniões que deveriam ter ficado pelas primeiras horas da manhã vão-se arrastando e arrastando. Não vesti roupa de trabalho, não calcei as sapatilhas carregadas de cimento em pó, não me preparei para inalar pó todo o dia e não contava com este nervoso miudinho que se alastrou durante todo o dia, e que cada vez deixou mais de ser miudinho. Ora porque não nos querem deixar ir, porque nos querem cá, porque fazemos falta cá, porque precisamos de mais uma reunião mais logo, porque essa reunião tem de ser adiada e porque no final é tarde demais para se viajar 5 horas por estradas sem condições, cheias de buracos, cheias de curvas apertadas, cheias de perigos. Fica-se então cá mais um dia na promessa de sairmos amanhã bem cedo, na tentativa de chegar a Chunar pela hora de almoço. Tenho o estômago com um nó bem grande, muita pressão, muito nervosismo, muita contrariedade, e uma cabeça que já nem pensar consegue. Aliado a isto a pressão de que temos de abandonar os quartos onde estamos. Acredito portanto que este será o meu último dia em Rewa. Amanhã é dia de viagem. Alegra-me saber que falta menos um dia para voltar para casa!

20.11.12

Diário da India III - Dia 17


Tenho finalmente a certeza que está por um fio a minha estada em Rewa. É apenas uma ponta de cabelo e uma viagem de meio dia que me separa de Chunar, o que na minha perspetiva me parece um oásis. Com este desejo em mente, enfrento mais um dia poeirento com novo ânimo e nova vontade de vencer. Vou buscar forças onde julgava que elas estivessem a faltar e consigo, contra algumas previsões colocar uma linha a funcionar, a grosso modo, sem afinações, mas a olho nu parece-me que vai resultar, parece-me que afinal isto vai mesmo contar sacos de cimento. A este sentimento de triunfo junta-se a notícia de que amanhã durante a manhã partimos para Chunar. Mal posso esperar, é hora de fazer as malas. Chega entretanto a nostalgia e o desejo de estar a fazer as malas para regressar a Portugal. Limpa-se a lágrima marota, não se pensa no futuro e vive-se apenas o presente, e o presente é dormir, é descansar.

19.11.12

Diario da India III - Dia 16


Parece cada vez mais real a possibilidade de ir para Chunar mais cedo. Em segredo sinto-a como uma lufada de ar fresco. Ir para outro sítio, começar tudo de novo, esquecer o que fica para trás, tudo isto me faz desejar realmente a partida. Arrasto-me cada vez mais por estas bandas. Não vejo as coisas seguirem em frente, não me vejo livre das algemas nem do ar sisudo com que vivo por aqui todos os dias. Estou farto de gritar surdamente, e farto de ter os nervos à flor da pele. Quero ir embora daqui, mesmo que seja para umas escassas centenas de quilómetros daqui, mas quero ir, e quero que seja já amanhã. Aqui já nada tem piada, já nada se mostra bonito e surpreendente. Aqui já não há nada para mim. Deixem-me ir…

18.11.12

Diario da India III - Dia 15


As condições meteorológicas conseguem, por vezes, moldar-nos o estado de espirito e as vontades. Associámos facilmente a chuva à tristeza, ao desleixo, à falta de vontade e o sol à alegria, à energia, à vitalidade. Este sol a mim não me molda. É um sol estranho, um sol que não é meu, um sol que daqui parece demasiado amarelo, um sol encoberto por uma poeira que não é nevoeiro, é demasiado sujo para ser nevoeiro. É sol que não me queima mas faz-me suar, não me torna moreno mas incomoda-me, não me transmite energia mas arde-me e arranha-me como o cimento que se esfrega na pele. Por aqui não chove, a temperatura é sempre igual, mas faz-me falta a chuva, faz-me falta um passeio com a água a regar-me todo o corpo e a encharcar-me a alma. Faz-me falta a água que brota dos olhos do céu para que parem de brotar lágrimas os meus…

17.11.12

Diario da India III - Dia 14


As diferenças na língua criam-nos barreiras muito difíceis de transpor. Não há uma palavra ou um som em português ou inglês que se consiga assemelhar ao Hindi. Até mesmo os gestos que no nosso quotidiano são banais e fazemos instintivamente, para um indiano são autênticos quebra-cabeças. O mesmo digo eu quando eles acenam a cabeça sem que eu perceba se dizem sim ou se dizem não. É frustrante querer pedir algo, fazer uma pergunta, e não obter nada do outro lado, nem conseguir mostrar outra forma para que o entendam. Existem no entanto indianos que por terem acesso a outros meios, como televisão e internet, estão mais familiarizados com os gestos ocidentais, porém, todos esses entendem e se expressam minimamente em inglês, o problema maior é que não é com esses que eu lido diariamente, eu lido com os indianos que nunca foram à escola, que não sabem ler, não sabem escrever e que no fundo até são simpáticos e prestáveis, querendo sempre ajudar. Esta grande barreira que impede a comunicação criou-me hoje um grande problema. Precisava pedir um cartão de forma circular aos camionistas a fim de testar o sistema, porém não tinha tradutor comigo, e o único que me disse que falava inglês, não percebia o que dizia (não se que inglês falava ele!). Restava-me por gestos tentar fazer-me entender. Como é fácil de imaginar não me saí muito bem. Qual é o gesto mais simples para indicar um objeto redondo em forma de disco? Unir as pontas dos dedos indicador e polegar tentando criar um círculo. Para meu espanto o primeiro camionista até fez um ar de quem percebeu, senti-me feliz… por meio segundo, pois o que ele tirou do tablier foi uma chave de fenda… Bolas! Tentei pedir novamente mas fui ignorado, e como o homem já se estava a sentir pressionado decidi tentar outro motorista. Voltei a fazer o mesmo sinal, uma, duas, três vezes e nada. Ele dizia-me algo que eu nem fazia ideia do que era, mas mostrava-se atento e desejoso de me ajudar. Continuei a insistir mudando o gesto, agora tentei criar um círculo com os dois dedos indicadores e os dois polegares. Ele fez uma cara de esclarecido e fez-me também um gesto. Uniu os dedos polegares e indicadores de uma mão e introduziu o dedo indicador da outra mão no círculo. Não, não era sexo que eu queria caramba. Soltei uma gargalhada, pedi-lhe que saísse do camião e lembrei-me que nos posto que montei tinha um símbolo do que eu precisava, ele amavelmente foi ao bolso e acertou no objeto que eu procurava. Estava difícil…

16.11.12

Diario da India III - Dia 13


Finalmente parece que a máquina que antes estava encravada começa a querer movimentar-se. Vejo o meu regresso aproximar-se apesar de ainda estar longe. Prefiro nem pensar que ainda tenho outra fábrica para visitar antes de ir embora. Sinto-me mais calmo se viver dia-a-dia e for traçando objetivos curtos com o único propósito de os ver realizados e ganhar ânimo para continuar. Hoje é como se me tivessem dado uma injeção de força, talvez tenha sido a raiva, certo é que vi as coisas mexer, andar para frente. Fiquei satisfeito e até já tive mais paciência para falar e ouvir os outros. Mais um dia que passou, menos um dia para voltar a casa, 13º dia por estas paragens esquecidas, um dia de sorte, ou a sorte de um dia ter corrido melhor.

15.11.12

Diario da India III - Dia 12


Acordei com o corpo menos dorido que os últimos dias, mas a mente, essa continua a penar e a pedir alívio. Não lhe encontro salvação e o trabalho é a única coisa que me distrai. Ainda assim não é uma distração que me sossegue. Irrito-me cada vez com maior facilidade, sinto os nervos à flor da pele, apetece-me explodir a torto e a direito mas ao mesmo tempo controlo-me e deixo que os nervos apenas me corroam o estômago cada vez mais fraco. Há dias em que parece que por muito esforço que faça nada é reconhecido e nada vale realmente a pena. Continuo a socorrer-me da máscara para disfarçar expressões, para abafar gritos que já nem sei se são de terror ou de frustração pois desta vez aconteceu algo que não previa, algo que não me achava capaz, um ponto de saturação que julgava infinito. Perdi por momentos o controlo de tudo o que me pertence, senti-me derrotado, senti-me despojado de forças, dobrei os joelhos e deixei que o corpo pendesse para trás até me sentar. Dobrei a cabeça para baixo, pousei o capacete na minha frente, tapei a cara com as mão sujas do cimento e chorei… Chorei porque queria desistir, porque não me sentia capaz, chorei porque nada mais conseguia fazer, chorei porque precisei de o fazer. Chorei porque não encontrei maneira de voltar para a minha terra, para a minha casa, para a minha família. Não resolvi nada com isto, mas soube-me bem. Não, ainda não cortei a barba, não estou com disposição.

14.11.12

Diario da India III - Dia 11



Sinto falta das notícias em Portugal, por estes dias tem sido lá um sem fim de manifestações contra a austeridade, passeou-se por lá a chanceler alemã, Angela Merkle, e joga hoje a selecção portuguesa de futebol contra o Gabão, sem o carismático Cristiano Ronaldo, mas com 7 jogadores do meu Sporting de Braga convocados! Que orgulho, e que pena não os poder ver em acção. É também hoje dia de greve geral. Por cá não fiz greve, mas foi parecido, hoje é o feriado do Diwali, ninguém trabalha, a fábrica está deserta, as máquinas que não podem ser paradas soam a silêncio e às 7 horas da manhã ainda está tudo a dormir. Reina a paz, a calma e o sossego. Despachei o que era possível pela manhã, pequenas coisas agarradas ao dia anterior, e tirei a tarde para descansar e recuperar energias na esperança de voltar com mais vontade e determinação ainda em acabar de vez com todas as tarefas. A ideia parecia excelente, mas revelou-se entediante, e fiz uma serie de coisas inúteis, entre elas dormir e organizar as fotos e músicas do telemóvel e do disco externo. A meio da tarde senti a mesma dificuldade que há dois anos num quarto na outra ponta deste corredor, não consegui ter água fria na torneira. Os dias aqui continuam quentes e estando eu a precisar de passar água fresca pela cara fui até ao lavatório mas a torneira mesmo virada para o lado azul vertia água quente demais para ser considerada só morna. O eterno problema das canalizações por fora das paredes, o sol aquece os tubos e por sua vez a água. Caiu a noite e os foguetes diminuíram em relação ao dia anterior, prevê-se por isso uma noite bem mais calma, a contrastar com dia previsto para amanhã. Olho-me uma última vez ao espelho, sinto que estou a ficar mais escuro, nem tenho apanhado muito sol, talvez sejam só côdeas. Passo a mão na barba que já nem arranha, está grande demais, amanhã corto, hoje é hora de ir dormir.


13.11.12

Diario da India III - Dia 10

 
Véspera do festival das luzes, para mim um dia normal, para a maioria dos indianos um dia especial, só trabalham meio-dia, a partir das 13 horas ninguém trabalha por cá, quanto a mim, sou o branco cá do sítio, trabalho até às 18h30 e já saio mais cedo. A fábrica ficou deserta de pessoas e povoada de luzes e velas por todo o lado. Não há pó de cimento, não há camiões que buzinam e se desfazem a cada lomba, não há camionistas a cuspirem tabaco mascado. Existe apenas paz e sossego. Cai a noite e a “guest house Ajit Bhawan” onde pernoito, almoço e janto, transforma o seu hall, escadaria e entrada num autêntico caminho de velas, onde apenas o cheiro se torna demasiado. Faz-me sentir calmo, começo a gostar do Diwali. A única parte que retirava a esta festa é o liberalismo em relação à pirotecnia, nesta noite toda a gente lança foguetes sem rei nem roque, para onde estão virados, não se importando com os outros nem se importando com eles próprios. Das duas uma, ou nestes dias há montes de feridos e com gravidade, ou são todos inocentes, porque a sorte protege os inocentes. Tive medo, tive muito medo… regressei por isso a casa, amanhã para eles é feriado, mas para mim não, eu estou de volta à luta! Feliz Diwali a todos!

12.11.12

Diario da India III - Dia 9



A palavra trânsito faz sempre muito sentido aqui na India. O trânsito por estas bandas é algo de impossível, tem poucas regras, muitos conhecem-nas, mas todos as ignoram. E no que trata a engarrafamentos é algo único. Nos últimos dias tenho sentido a mesma sensação de quando estamos presos no trânsito e vamos a caminho da estação de comboio. Aqueles nervos, aquela raiva, aquela vontade de ter asas, os suores, os murmúrios… Mas finalmente hoje foi o dia em que esse trânsito começou a fluir melhor, aproximamo-nos alguns passos mais da estação, mas continuamos longe e receio não chegar a tempo de entrar no comboio. Cai-me no estômago como uma bola, difícil de digerir como o cimento. Uma leve brisa de calma soprou e deixou-me apreciar as luzes do Diwali. Luzes iguais às de Natal, mas não havendo aqui Natal, há Diwali (ou festival das luzes) alguns foguetes e muita ansiedade para que chegue o dia de amanhã entre os locais, a véspera do Diwali, já eu só anseio o amanhã por saber que falta menos um dia para te abraçar e te mimar.


11.11.12

Diario da India III - Dia 8

 
Há dias que têm tudo para dar certo quando nascem, o pior é que, por vezes, ainda são alimentados a leite e já se tornaram no maior pesadelo. Um acidente com causas misteriosas atrasou ainda mais a conclusão dos objectivos que me trouxeram cá. Isto e algum esperto me ter cortado os cabos de rede durante a noite e ter levado cerca de 5 metros de fio! Não se consegue confiar em ninguém… Conseguir até se consegue, mas são poucos. Os camionistas é impossível confiar neles, sisudos e cinzentos como o cimento que carregam, estranhos como o tabaco que cospem depois de mascado. Estou farto de aqui estar. Preciso ir para casa, preciso de uma lufada de ar fresco que me anime e me dê ânimo para encarar o que falta, e ao que se sugere, pode ser mais do que esperava. Não quero isto, não quero mais cá voltar. Demasiada pressão psicológica leva-me a perder a calma por breves momentos. Sinto-me tenso, a tremer, a morder o lábio, não consigo focar a visão decentemente e solto um berro tapado pela máscara e ensurdecido pelo cimento. Volto a acalmar e a deixar de pensar, volto para o meio de quem não confio, inalo o pó que pelo ar se passeia e odeio-o tanto ou mais do que ter de estar tão longe de casa, tão longe do mimo, tão longe de ti…

10.11.12

Diario da India III - Dia 7


Encontrei uma distracção que me faz olhar para o cimento e vê-lo com alguma cor, apazigua a dor interior, leva-me o pensamento pela mão e faz-me esquecer a dor física do cansaço, do desespero e da desmotivação. Não se chama droga, chama-se música! Encontrei hoje na mochila o mp3, fez-me bem ouvir os sons conhecidos, reviver momentos, cantar ao som da música, vibrar com elas e sorrir um pouco, descontraí, e fez-me extremamente bem. Hoje mudo-me da planta de Bela para Rewa, tenho um quarto mais pequeno mas mais cómodo, com lençóis lavados, melhor comida, melhor atendimento e com grilos! Tenho grilos no jardim em frente ao quarto que vão cantar toda a noite e tenho um grilo dentro do meu quarto que me fugiu para debaixo de um armário e que não consigo apanhar. Faz hoje uma semana que entrei no aeroporto de Delhi, e apesar de não fazer uma semana que estou a trabalhar sinto-me de rastos. Encontrei uma balança e o peso era de menos 1,5 quilos que o normal. Talvez a balança não esteja correcta, ou a aceleração da gravidade tenha feito das suas. Um quilo e meio numa semana é muita coisa, e eu tenho-me alimentado bem, pelo menos não tenho sentido fome. Mas tenho alguns desejos, por causa da conversa de ontem, hoje apetecia-me umas castanhinhas assadas e agora á noite deu-me um desejo enorme de broa de milho… Também tenho saudades tuas, não o digo todos os dias porque me tento enganar a mim próprio, mas tenho saudades, muitas mesmo… bolas…

9.11.12

Diario da India III - Dia 6


Descobri duas coisas que todos os indianos têm, além de muitas outras bem estranhas, fiquemos só por estas duas. Ter um lenço “da mão” também conhecido por lenço de pano sempre à mão e conseguir beber uma garrafa de água de uma só vez sem tocar no gargalo da dita e sem fechar a boca, tentem esta proeza. Esta perícia acaba por ser fácil de perceber porque atinge toda a gente, com a falta de limpeza e higiene que por aqui cresce mais que cogumelos na floresta e não sendo ético (mesmo na India) negar água a ninguém, toda a gente bebe de todo o lado, com a devida autorização desde que não enfie lá os beiços. Confesso que tentei e como é evidente molhei-me todo, só consigo encher a boca, fechá-la e engolir a aguinha, sempre engarrafada e lacrada, a saber ao cloro. Quanto ao lenço da mão é essencial e serve para tudo, desde máscara de partículas a engraxador de sapatos (a quem os tem), serve ainda para limpar o nariz e o suor que escorre pela cara ou as mãos no fim de as lavar, um multiusos portanto. Tenho passado nos últimos dias por imensos animais que andam à solta, não têm dono, mas que convivem no meio das pessoas como se sempre aqui estivessem. Entre eles, corvos, javalis e imagine-se raposas. Faz-me uma certa confusão como estes animais se passeiam pelo meio de pessoas, bicicletas, motas carros e camiões. Raio de país estranho. Tirando todas estas curiosidades continuo a ingerir quilos de cimento diariamente e creio estar a ficar com os neurónios muito perto do “Tilt”, talvez seja cimento a mais.

8.11.12

Diario da India III - Dia 5


Levantei-me com um peso nos ombros como se carregasse toda a India. Começou a bater-me o cansaço, sinto-me aqui preso há um mês e nem há uma semana cheguei. Arrasto os pés tal e qual um dos sujeitos a quem tentei ingloriamente explicar onde ficava Portugal. É enorme a dificuldade com a língua, nem mesmo a língua gestual se consegue aplicar como se pensa, exemplo disso é a grande maioria dos que me rodeiam não compreender o sentido de um polegar erguido e o resto da mão fechada. É a língua que nos define e é ela que esconde muitos problemas, como a afta que me afecta e que só no final do dia consegui descobrir, a falta de espelhos tem destas coisas, não vemos em nós o que facilmente vemos nos outros. Vamos lá contar a história do livro em Itália e deixar as brincadeiras parvas com a tentativa de aguçar a curiosidade pelo dia seguinte deste diário. Após a aterragem do avião em tamanho reduzido da Portugália, no aeroporto de Milão, os passageiros, como normal, arrumam os seus pertences e saem ordeiramente do avião. Se a saída não se efectuar directamente para o interior do aeroporto, por norma existe um autocarro para fazer o transporte, ora foi exactamente o que aconteceu, toda a gente entrou no autocarro com a excepção de um passageiro que continuava dentro da aeronave à procura de um livro, e tendo a certeza que o fazia transportar consigo e que não poderia ter saído pelo próprio pé do avião, avisou a tripulação que não estava a conseguir encontrar o seu livro. Dirige-se então um membro da tripulação do avião à porta traseira do autocarro e grita alto e bom som “Alguém por engano ou distracção trouxe consigo um livro que não lhe pertencia?” Os passageiros olham uns para os outros, uns na tentativa de identificar um movimento suspeito outros a perguntarem-se com os olhos que pergunta estranha era aquela, outros a perguntar o que disse o homem porque não falam português, e para esses, o senhor repetiu exactamente o mesmo mas agora em inglês cerca de 10 segundos depois. Volta a aguardar mais 10 segundos e à falta de reposta pergunta novamente, ninguém responde e ele fica-se apenas pelo “Não?” A pontos de voltar costas por ver a sua esperança desvanecida, levanta-se um sujeito com o cabelo todo branco a aparentar os seus 60 anos e que estava a meio metro do tripulante do avião, chega-se perto dele, coloca a mala de mão no chão enquanto a abre e diz “Sou eu que tenho, mas peguei nele só porque não estava lá ninguém e o livro estava sozinho, foi para não o deixar lá, pensei que alguém se tinha esquecido dele!” 3 conselhos para quando viajarem de avião, nunca percam de vista os vossos pertences, se encontrarem algo que parece estar perdido entreguem à tripulação e no caso de não entregarem respondam que são vocês que têm o objecto perdido à primeira vez que perguntarem, fica bem, e não passam por ladrões.

7.11.12

Diario da India III - Dia 4


Há livros vazios de conteúdo, livros vazios de palavras, livros por escrever e livros que não o deviam ser. Contudo, existem bons livros, livros que nos apaixonam com a sua história e nos fazem sonhar, livros que nos oferece a nossa paixão, livros que são o nosso sonho, livros que nos tocam, que nos marcam nem que seja pela dedicatória escrita num virar de página. Todos são livros que demoram uma eternidade a escrever, tudo é revisto ao pormenor para não falhar nada, para sair na perfeição, para agradar, para vender. Por aqui nota-se a falta de livros, sejam eles quais forem, bons ou maus não interessa, mas não existem, não se encontram. Acredito que cada pessoa que comigo se cruza na rua tinha histórias que dariam um bom livro, mas falta-lhes o tempo e a mim também. Cheguei ao fim do dia de rastos, inalei quilos de cimento, tenho o sabor do pó a roer-me os dentes e sinto-me como se tivesse acabado de escrever uma enciclopédia de uma assentada só. Mas não o fiz, porque falta-me o tempo, começo a senti-lo escorregar-me entre os dedos como o cimento que rapidamente se acumula em tudo o que está parado. Aflige-me este sentimento, assusta-me olhar para o futuro, e por isso continuo a querer olhar só para hoje, aproveitar a coisa que melhor me sabe em terras indianas, um bom banho quente para limpar toda a porcaria que carrego, e deixar-me arrastar até à cama no fim de um jantar com uma comida intragável e adormecer sem dar por isso. Hoje há futebol em Braga, um dos melhores e mais apetecíveis jogos na minha cidade natal. O meu Braga defronta o poderoso Manchester United e eu estou do outro lado do mundo a tentar despertar à 1h30 da manhã para me agarrar à TV e ver o meu clube através da Tem Sports. Sinto a cabeça a explodir, preciso relaxar, preciso desligar o cérebro. 

6.11.12

Diario da India III - Dia 3


Todos os dias tenho atravessado uma linha de comboio em pleno funcionamento e outra em construção. Ao contrário do que se pensa por esse mundo fora, os comboios aqui também podem ser normais, onde as pessoas vão e permanecem sentadas, é desses comboios que por cá passam, muitas composições mas sem penduras nas janelas e no tejadilho. Ao passar pelo caminho-de-ferro que está a ser construído imaginei como é triste ser comboio, os outros trilham-nos os caminhos e não nos podemos desviar deles sob perigo de não voltarmos a encarrilhar. Não quero ser um comboio, quero trilhar o meu próprio caminho, pisar onde quero mas ter o cuidado de não pisar ninguém, ao contrário do que faço com os insectos que se passeiam pelo meu quarto e pela minha cama. Comigo não dorme ninguém, nem coisa nenhuma! Por aqui começo finalmente a ver a locomotiva sair da estação. Como uma máquina a vapor, devagarinho lá vai tentando movimentar as rodas todas presas umas às outras, muito fumo, mas ainda assim pouco movimento para o esforço gasto, tivesse a locomotiva uma pequena ajuda para vencer a inércia e tudo escorregaria melhor. Outra coisa engraçada que tenho visto por cá são os miúdos todas as manhãs em direcção à escola. É giro vê-los de uniforme, como se de uma telenovela de tratasse, sem os conhecer, desejo-lhes a maior sorte do mundo, eles não me vêm, não me ouvem, mas sei que por certo sentirão o meu sorriso. Não merecem esta miséria, merecem crescer como os uniformes, sempre limpos, aprumados e sem falta do essencial. Por falar em essencial, por aqui o essencial para mim tem sido a comida, e tem melhorado diga-se em abono da verdade. Hoje voltei a comer no mesmo local de há dois anos atrás, revi caras que continuam iguais e comia a comida a que já estava habituado com uma surpresa, hoje havia batatas fritas aos palitos! Que maravilha… Ainda me falta contar a história do livro em Itália, mas hoje já não dá tempo.

5.11.12

Diario da India III - Dia 2


 
 
Há dias em que as coisas só podem mesmo melhorar, e hoje era um dia desses se as coisas não se tivessem mantido abaixo do que eu desejava. Não consigo perceber onde pode chegar a falta de vontade de um humano. De positivo (sim existe sempre algo positivo) destaco a comida e o acesso à internet. A comida, não que tenha sido muito boa, mas foi melhorando ao longo do dia. Ao pequeno-almoço fomos brindados com torradas recheadas com puré de batata e salsa acompanhadas de ovos estrelados com pedacinhos de tomate e cebola misturados com a clara, um espectáculo! Mas eu não comi, lá me trouxeram umas torraditas com manteiga como manda a sapatilha. Do almoço nada a relatar e o jantar esse sim, bem melhor que o resto, uma massinha com cenouras e feijão-verde digna de registo, dentro das coisas más que por aqui se comem esta era realmente a menos reles. Durante o dia também fui comendo, involuntariamente, cimento a magotes. Nem a máscara que me sufoca me valeu de muito já que cheguei ao fim do dia e sentia aquele pó cinzento a arranhar-me os dentes. Não arranhava só os dentes já que graças ao cimento acumulado em todo o corpo ao tomar banho à noite tive direito a uma esfoliação corporal simultânea. Tenho tentado manter um estilo alegre e bem-disposto durante estes relatos, tentando evitar algumas palavras e expressões, mas não consigo esconder mais. Hoje com o acesso à internet e algum tempo disponível para pôr a leitura da caixa de e-mail em dia, senti um perto no peito. Chama-se saudade e tenho evitado falar nela. É ela que me forma uma lágrima que não cai mas que me dá tanta vontade de sair daqui. Apetece-me sair daqui e correr para os teus braços. Não pertenço a este mundo imundo, desinteressado e diferente o suficiente para não me interessar por uma pontinha dele. Não tenho nada contra a India mas não quero cá voltar. Desta vez estou mesmo farto, apetece-me atirar a toalha ao chão, desistir, fazer-me fraco. Tenho vivido um dia de cada vez, pensando e desejando apenas que chegue o amanhã, tenho tolhido e bloqueado o meu próprio pensamento, tornei-me prisioneiro de mim mesmo, libertem-me…

Diario da India III - Dia 1


 
Mais um dia destinado a viagem. Desta vez a viagem cumpria o trajecto Delhi – Rewa, passando por Kajuraho. A primeira parte feita em avião correu como esperado, no avião ao estilo camioneta de carreira com paragem em Varanasi. De volta aos ares e de volta a Kajuraho 2 anos depois. Quase tudo igual, o calor, o ar abafado, o aeroporto parecido com uma estação de camionagem, as escadas movidas pela força humana, o carrinho que transportam as malas entre o avião e a passadeira de recolha pelos passageiros movido a força de pernas de 10 indianos, quase tudo igual ao que encontrei há 2 anos atrás, a única diferença foi ouvir no meio de cerca de 100 pessoas “Eles estão a empurrar o carrinho à mão!” Foi muito estranho ouvir uma voz portuguesa que não a de nós os 4. Sim estavam mais dois portugueses no aeroporto de Kajuraho e se por um lado parecia um milagre, por outro só confirma a teoria de que existe um português seja onde for. Foi um episódio engraçado, para relembrar, tal como o episódio do livro no aeroporto de Milão, ainda não o contei, esqueci-me, mas conto depois mais para a frente. Faltavam-nos ainda cerca de 3 horas até ao destino final, por montes e vales e locais onde a placa “Fim do mundo” assenta que nem uma luva, e foi por aí que pela primeira vez vi elefantes, 3 enormes elefantes com suas trombas usadas para derrubar árvores, e se não era essa a sua tarefa era o que lhes tinha apetecido fazer, e não era eu que lá ia pedir para eles pararem. Ontem falava no meu receio de as coisas piorarem, pois é que pioraram mesmo, a casa de hóspedes de Rewa não tem lugar para nos hospedar e ficaremos nos próximos dias na fábrica de Bela, não muito longe, mas que provocará um certo transtorno em transportes de um lado para outro. Vamos a ver como correm as coisas daqui em diante, amanhã é o primeiro dia mais duro, mas continua a ser o mais esperado. Sim, porque enquanto aqui estou anseio sempre pelo dia de amanhã, para que chegue mais rápido o dia de abraçar quem amo…

3.11.12

Diário da Índia III - Dia 0


 
 
Voltei. Voltei a escrever o dia 0 na minha terceira visita à India. Confesso que não tenho a mesma vontade, a mesma força e a mesma frescura mental para aguentar o que por cá se pena. A verdade é que será esta a estadia mais longa, imagino-a a mais complicada. Começou por sê-lo na despedida, nenhuma das outras duas me custou tanto. Três. Três era o número de vezes que tinha, em tempos, previsto visitar a India, e cá estou, mas já nada me surpreende, já não há aventura, já sei para o que venho, já sei o que encontro, não me faz confusão as mãos dadas em homens de bigode posto, não me faz confusão o calor húmido nem o cheiro característico que para mim será sempre o cheiro a India, porque não o encontro em mais lado nenhum, e não o assemelho a nada mais. De diferente, desta vez, talvez só consiga destacar o valente trambolhão que dei no aeroporto, uma queda desamparada como se tivesse sido atropelado por um comboio, mas na verdade tropecei só numa mala. Não me lembrava de cair assim desde miúdo, mas pouca gente reparou, e quem se riu mais até fui eu. Por estranho que pareça, os 5 lugares do carro que rapidamente se transformaram em 6 e a condução habilidosa de quem consegue conduzir em Delhi já me parecem banais, como o detector de metais à entrada do hotel 5 estrelas que apita, mas ninguém quer saber porquê! Sim leram bem, estou num hotel 5 estrelas, em que o chão espelha e reflecte a minha imagem, em que tenho um senhor no elevador de luvas brancas para pressionar o botão por mim, e onde trabalha gente cuja função é sorrir e perguntar às pessoas se estão bem ou precisam de alguma coisa. Que coisa boa… Por falar em coisas boas, nunca tive duas refeições tão boas na India como hoje. Sem picantes, com arroz com sal, com massa sem imenso pimento e pimenta, com amendoins, com carne de frango e de borrego… claro que o restaurante só podia ser chinês-japonês. Enchi o bandulho, porque tão cedo não como tão bem. Parto de manhã cedo rumo ao que me trouxe cá, acabam-se as mordomias, as comidas boas e dizemos olá ao cimento e aos enlatados que levamos de casa. Só espero estar a contar com o pior e as coisas melhorarem, porque senão…